“Ace corre girando sua espada da fênix e atinge a pata do dragão, fazendo sangue esverdeado salpicar nas paredes do calabouço da morte. Set, voando atrás das gárgulas que decoram o aposento, aproveita para lançar sua magia de bola de fogo, queimando a carne da barriga da criatura. Mas o dragão não se dá por vencido, e aponta sua boca escancarada para os herois, dela saindo um jato de ácido esverdeado que queima o paladino de Thyatis e joga-o para trás. Artemis, no entanto, aproveita-se da distração do enorme dragão para colocar-se devagar embaixo dele, rasgando o rosto em um sorriso ao ver um espaço entre as escamas que ele pode utilizar para atingir o coração da fera…”.
Bam. Bam. Bam.
Após breve pausa, a voz continua, mais incisiva:
“O dragão percebe a presença de Artemis e utiliza uma de suas garras para rasgar seu peito, jogando-lhe com violência de encontro a uma das paredes. O monstro prepara-se para devorá-lo, quando Ace, ainda fumegando pelo ácido, salta em seu pescoço e o atinge com sua espada. Set utiliza mais uma vez seus conhecimentos místicos para conjurar um raio mágico tão poderoso que abre um rasgo na lateral do dragão. Drike aproveita seu tamanho diminuto e….”
Bam. Bam. Bam.
“e… E ATINGE A CRIATURA COM SEU MACHADO. ATINGE. ATINGE”.
■
O homem levou o cântaro pela terceira vez à boca. O garoto, que observava o pai atender os recém-chegados, pensou que aquele homem nunca ia mais parar de beber.
– Obrigado, Gravos, por nos receber e deixar que acampemos em seu sítio. Tem sido uma loucura, esses dias. Que os deuses nos protejam.
O pai olhou com simpatia para as oito pessoas ali sentadas e deu uma resposta educada. Já há dois meses tinha virado rotina receber viajantes cansados, pessoas que saíam de Valkaria levando nas costas apenas o que podiam carregar. O homem sedento era um bom exemplo. Pela conversa com o pai, o garoto sabia que ele era um banqueiro, um homem importante e de muitas posses. Agora, tudo que possuía estava em cima de uma carroça na qual se espremia ele, mulher e filhos. Aren, contudo, ainda achava que eles tinham conseguido levar muita coisa; a maioria das pessoas que paravam ali possuíam apenas a roupa do corpo, ou quando muito algumas panelas. Ficavam uma noite, no máximo, e depois iam embora, sem olhar para trás. Algumas deixavam um aviso antes de ir, como foi o caso do banqueiro.
– Você tem que sair daqui, Gravos. Está a menos de três horas da capital.
– Não vou sair da minha casa. Herdei do meu pai, que herdou do dele. Você sabe disso, Reginfled.
– Você não entende… Você não viu o que eles fazem com as mulheres… Eles não são… humanos… eles…
Gravos pediu para o banqueiro se calar e mandou que Aren entrasse. “Muito barulho para apenas mais uma guerra”, pensou o garoto assim que sumiu da vista do pai. Em vez de ir para casa, passou por trás do moinho que havia no sítio e se afastou para um pequeno brejo que havia no fundo do sítio. Gostava do lugar e gostava de pensar que era só dele. Ajudava o fato de quase ninguém ir ali. Um local secreto.
– Seu pai fez bem em lhe retirar dali.
Aren estalou o pescoço ao virar rapidamente para o lado de onde vinha a voz. Era uma garota só um pouco mais velha que ele, filha do Banqueiro. Usava roupas estranhas, que obviamente não eram adequadas ao sítio. Estava encostava na Parigueira, uma velha árvore que havia logo após a descida de um barranco que levava ao brejo.
– O quê?
– Você ficaria com medo. Com medo de dormir à noite.
– Não teria nem um medo. É só mais uma guerra estúpida.
– Não estamos fugindo de uma guerra.
– Estão fugindo de quê, então?
– De monstros – falou a garota com uma voz que fez a pele de Aren se manifestar.
■
O dragão finalmente estava caído para o lado, derrotado. Ace e Set estavam em cima da criatura, em júbilo. Artemis e Drik estavam lado a lado, abraçados, comemorando a difícil vitória. As gárgulas, mudas e ainda fumegando ácido, testemunhavam o sucesso do grupo.
O garoto esperou. O barulho finalmente cessara. Acabou, ele pensou. Acabou tudo. Soltou o ar pela primeira vez naquela noite.
Ele estava errado.
■
Encapuçados com chicotes, dizia uns. Uma nova religião, falou um padre de Khalmyr. Querem nos obrigar a aceitar um novo deus! Uma blasfêmia. Segundo um sapateiro, escravizavam quem queriam, e bebiam o sangue de quem não prestava. Para um antigo comerciante de vinho, eles eram ladrões de mente, a mando de Sszzaas, Deus da Traição. Ladrões de mente são muito espertos, dizia ele, assim como o deus das mentiras. Foi assim que enganaram o imperador.
Aren aprendera a escutar as conversas dos viajantes, cada vez mais apressados e desesperados, sem chamar a atenção do pai. Uma tarde um sujeito repleto de tatuagens, acompanhados de quatro ou cinco jovens, saiu do grupo e veio até ele, que estava sentado na terra atrás do pai, um tanto afastado.
– Olá, rapaz. - ele olhou para os objetos que Aren manuseava – O que têm aí?
-- Nada – falou o garoto entredentes, olhando para o homem. Não tinha gostado como sua mãe se referira a ele um pouco antes, sussurrando para o pai que ele era um “cafetão”. Aren não conhecia essa profissão, mas não parecia ser algo bom como um banqueiro.
- Nada? É por isso que se esforça tanto para que seu pai não o veja?
Aren ficou em silêncio.
- Não vou contar para ele.
Devagar, o garoto abriu a mão, mostrando os pedaços de madeira que segurava. Lembravam vagamente figuras humanoides, mais eram tão surradas que era difícil ter certeza.
-- Interessante.
– Esse é Set – nomeou o garoto, segurando uma delas, feliz pelo interesse do “cafetão”. Talvez fosse um fabricante de brinquedos. –, o mais poderoso mago de toda Arton. Ele consegue te matar apenas levantando um dedo.
– Não brinca.
– Sim! Este é Ace, paladino de Thyatis. Ele não morre nunca e não tem medo de nada, e sempre faz o certo. Esse aqui é Artemis, ele é esperto e somente é visto quando quer.
Aren pegou o menor pedaço de madeira.
-- Este é Drik, o anão mais poderoso de todos. Ele inclusive já venceu os 13 gigantes. Tem também o Rui, que joga encantos com seu instrumento musical. Juntos eles formam os Aventureiros de Arton e podem derrotar qualquer monstro que apareça!
– Não, não podem.
– Podem, eles podem derrotar todos os monstros que existem, mesmo que seja um novo Deus. Ninguém vai roubar o cérebro deles, ou beber seu sangue ou bater neles com chicotes. Vocês não precisam fugir mais, por que…
– Eles não vão vir, garoto.
– Claro que vão, os Aventureiros….
– Eles estão mortos, garoto. Mortos, entendeu?
– Eles não estão! - o garoto levantou – não estão, é mentira? Eles….
Escutando a voz do filho, Gravos levantou-se e foi até ele.
– O que está fazendo, Aren?
-- Eles vão nos salvar! Os aventureiros! Eles não estão mortos!
– Você está de novo brincando com essas porcarias? – Gravos segurou o filho pelos ombros e o balançou – vá terminar de trazer a palha para o celeiro e pare com estas palhaçadas, Aren! Não temos tempo para isso. Vai!.
O garoto correu, sem escutar mais nenhuma palavra. No seu local secreto, só o vento secou as lágrimas do seu rosto.
■
Tudo em silêncio, Aren esperou. Catou os bonecos e abriu, com vagar, a porta do celeiro. Silêncio. Dali se via a casa, ao fundo. A porta, entreaberta, deixava escapar um rasgo de luz, do lampião, que era a única coisa que orientava o garoto. Era uma noite sem lua.
Com vagar, ele andou até a porta. Não havia nenhum único som, salvo o sibilar do vento passando entre as árvores. Tentou abrir a porta o mais suave que pode, mas ainda assim ela rangia fino. Era uma casa de madeira, velha. Aren não se lembrava dela ter sido nunca reformada.
A cozinha parecia vazia. O garoto entrou fechando a porta atrás de sim, mas aquela porta nunca fechava direito. Deixava passar vento, fazendo a chama do lampião oscilar em cima da mesa. As costas de Aren gelaram, e então ele sentiu medo, muito medo. Segurou os bonecos com força, tanto que chegou a machucar a mão, e avançou mais na cozinha. Foi quando viu o pé descalço da mãe, junto à porta da despensa. Não via o resto do corpo, que estava para dentro deste cômodo. A visão do pé, no entanto, já lhe retirou o coração do peito; ele estava virado em um ângulo impossível, o dedão encostado na canela. A sandália, a sandália que a mãe tanto pedira para o pai comprar, estava jogada para o lado, há uns dois metros de distância.
Com pés de uma tonelada, esforçou-se para ir até a despensa. A cada passo, via mais do corpo da mãe. O resto da canela, o joelho, a barra do vestido – e então o sangue.
Aren se ajoelhou e vomitou. O ranger da porta, entretanto, o fez interromper o líquido quente na goela. Vento soprou mais forte na cozinha, fazendo a chama balançar ainda mais, e uma sombra pendeu sobre o garoto, que ainda segurava os brinquedos com força.
Foi então que viu.
■
– Temos que ir embora daqui, Gravos. Amanhã.
– Não vou sair da minha casa, Sara. Coma direito, Aren.
– A guarda da cidade de Valkaria não funciona mais. Não há mais exército do reinado patrulhando as estradas. Estamos sozinhos, Gravos.
– Esta propriedade é tudo que temos… tudo que temos. Não é possível que não possamos mais jantar sossegados!
– Você sabem o que têm naquela cidade… a todo tempo olho para o céu esperando ele ficar vermelho e demôn…
– Não se atreva, Sara! Aren está aqui!
– Mas ele tem que saber! Ele…
Um barulho na porta interrompeu a mãe. Todos ficaram em silêncio.
– Quem pode….
Gravos levantou-se da mesa e foi até a sala, sendo seguido pela mulher. Aren aproveitou o breve momento de solidão para pegar o boneco de Set de dentro de um saquinho que mantinha escondido no calção. Apontou o braço do “mago” para o local onde pai estava sentado. “Então Set moveu seus braços e falou palavras mágicas antigas. Apontou então para o temível ogro que avançava com uma clava contra ele, fazendo-o sumir no ar. No lugar onde estava a criatura, somente...”.
Bam. Bam. Bam.
Passos. Gritos de homem e de mulher. E então sua mãe surgiu no limiar da luz entre a cozinha e a sala. Estava tão branca que Aren poderia não reconhecê-la, caso a visse na rua.
– Fuja, Aren, fuja…. Agora!
■
Bebida. Bebida, sangue e urina. E ainda outra coisa que o garoto não conseguia definir. Eram esses os cheiros do homem que surgiu no limiar da porta da cozinha.
Ele tinha um facão na mão, já manchado de sangue, substância que também cobria suas vestes surradas de couro. Seu rosto era escuro e esquio, com várias erupções e deformidades que o fariam se destacar em uma multidão. Ele avançou contra o garoto, mas este foi mais rápido e saltou para a sala. A visão do seu pai caído, com a garganta aberta, bem como a de dois outros homens que não conhecia, não o fez parar. Impelido pelo mais absoluto pavor, Aren jogou-se contra a porta para o pátio e ganhou à noite, pouco enxergando. Apenas por instinto tomou o caminho do moinho, e do brejo, que tanto conhecia. Atrás dele, escutava o homem arfar e praguejar.
– Vou lhe pegar, garoto… vamos nos divertir um pouco.
Aren parou na borda do brejo. Nada se enxergava, mas desceu com facilidade o pequeno barranco e circundou a velha Parigueira. Tentou ficar quieto, mas escutava um batuque rítmico que não conseguia identificar. Demorou mais de dez segundos para entender que eram as batidas do seu próprio coração.
– Estou lhe ouvindo, garoto – o homem estava próximo, bem próximo, embora Aren não pudesse vê-lo. -- Vai ser rápido, prometo. Não devia, já que seu pai deu trabalho e matou dois dos meus companheiros – ele agora estava mais perto ainda, questão de poucos metros – mas sua mãe já pagou sua dívida, posso garantir. Me diverti um bocado.
O garoto esforçava-se para ficar em silêncio, mas não conseguia silenciar a respiração e o próprio peito. Amaldiçoou-se por não ser Artemis e sumir nas sombras, ou Ace para cortar aquele assassino em dois, ou mesmo Set para enviá-lo ao inferno proferindo apenas uma palavra mágica. Mas ele não era um heroi. Era simplesmente um garoto.
– Eu vou lhe pegar, filho… Não se preocupe…. Será melhor comigo do que com a merda vermelha…. já posso sentir sua carne….
Por um segundo a faca do homem brilhou, e Aren percebeu que ele estava ao seu lado, logo acima do barranco. O garoto, então, sem pensar, puxou a perna do homem. Ele escorregou na lama e desceu de supetão o barranco, indo de encontro aos galhos da Parigueira. Fez barulho horrível durante alguns segundos e então silenciou. Demorou um pouco até que Aren, tateando, percebesse que dois galhos mais grossos e afiados atravessavam o peito do homem. Demorou ainda mais tempo para perceber que ainda apertava os bonecos na mão em formato de punho.
Estava sozinho agora. E a estrada lhe esperava.