Por Andre Esteves
A Serpente do Céu, cidade lar de
Sszzaas, o grande corruptor, pode ter muitos adjetivos, mas
“agradável” com certeza não é um deles. A cidade, em forma de
serpente gigante que rodeia uma montanha, é repleta de armadilhas
mortais, até para os seus próprios moradores. Assim foi construída,
tal qual o mundo onde está, Venomínia, para que somente o mais
inteligente sobreviva.
Em um enorme salão, ao qual somente
se chega passando numerosos aposentos repletos de répteis, nuvens de
gás e setas ocultas — todos incutidos com venenos raros e mortais,
alguns tão exclusivos que somente existem naquele local —,
encontra-se o deus da traição sentado em frente ao fogo. As chamas
espelham em suas pupilas verticais e iluminam a pele branca e úmida
da forma do homem serpente que costuma utilizar quando está só.
Seus ouvidos escutam os sussurros de
seus servos na cidade, as tramas de assassinato, de disputa pelos
cargos mais importantes, próximos a ele. “Eu o sirvo acima de
tudo, Grande Corruptor”. Todos o adulam, murmuram e o servem. Todos
à espera da oportunidade de enfiar uma adaga em sua nuca. Não fosse
assim, não seriam seus servos.
Não, não são os tediosos sussurros
de traição que retiram o Deus de seus profundos pensamentos. Ao
levar à boca o copo com o líquido avermelhado que degusta, são os
passos na sala ao lado que aguçam seus ouvidos.
A porta se abre e uma sombra cumprida
surge seguida por uma figura usando um manto acinzentado. Pela
abertura da vestimenta, no entanto, se vê que é uma mulher bela,
jovem, com roupas de caçadora por baixo. Um arco está preso ao lado
do corpo, cuidadosamente guardado. Ela adentra o escuro salão com
passos vacilantes e joga-se de joelhos em frente a figura reptiliana.
– Salve-o! - ainda que não fosse a
postura, bastava o timbre da voz para perceber que se tratava de
alguém passando por extremo sofrimento. Não era um pedido. Era uma
súplica.
Sszzaas fitou durante alguns segundos
Neruite, a mais nova Deusa do Panteão de Arton. Largou o copo no
apoio da cadeira, e recostou-se confortavelmente.
– Sua figura não está muito
condizente com a Deusa dos sonhos. Muito menos da esperança.
– Farei o que quiser. Meu poder, meu
corpo, o que quiser é seu… serei sua serva.
O Deus da Traição molhou os lábios,
apreciando os contornos da figura ajoelhada.
– Tudo isto eu já tenho… ou posso
ter, facilmente.
Neruite levantou o rosto pela primeira
vez. Um rosto lavado de lágrimas.
– Ele sofre. Ele sofre
terrivelmente. Sofre tanto que nem sabe que sofre… isso, para ele,
é pior que a morte… Ajude-me, Sszzaas…Eu farei qualquer coisa…
– Nem minha inteligência
privilegiada está imune a burrice do seu protegido, minha cara. De
pouco adianta cercar as ovelhas quando estas insistem em cavar por
debaixo dela e correr atrás da raposa. Lamento.
O silêncio cai na sala durante quase
um minuto. Neruite limpa as lágrimas no manto e fica de pé. Seus
olhos estão voltados para o homem serpente, mas parecem fitar muito
além.
– Não há outra escolha, então -
disse a deusa da esperança sem qualquer esperança – Se ele não
pode ser salvo, me entregarei a Tormenta e sofreremos juntos.
Ela se afasta com passos largos,
decididos, muito diferentes dos que usou para entrar no aposento.
Para próxima a porta, no entanto, quando escuta o arranhar do copo
do Deus da Traição no apoio da cadeira.
– Espere – diz ele em voz baixa –
Tem algo que eu posso querer.
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