domingo, 26 de fevereiro de 2017

Um Pedido Especial


Por Andre Esteves

A Serpente do Céu, cidade lar de Sszzaas, o grande corruptor, pode ter muitos adjetivos, mas “agradável” com certeza não é um deles. A cidade, em forma de serpente gigante que rodeia uma montanha, é repleta de armadilhas mortais, até para os seus próprios moradores. Assim foi construída, tal qual o mundo onde está, Venomínia, para que somente o mais inteligente sobreviva.

Em um enorme salão, ao qual somente se chega passando numerosos aposentos repletos de répteis, nuvens de gás e setas ocultas — todos incutidos com venenos raros e mortais, alguns tão exclusivos que somente existem naquele local —, encontra-se o deus da traição sentado em frente ao fogo. As chamas espelham em suas pupilas verticais e iluminam a pele branca e úmida da forma do homem serpente que costuma utilizar quando está só.

Seus ouvidos escutam os sussurros de seus servos na cidade, as tramas de assassinato, de disputa pelos cargos mais importantes, próximos a ele. “Eu o sirvo acima de tudo, Grande Corruptor”. Todos o adulam, murmuram e o servem. Todos à espera da oportunidade de enfiar uma adaga em sua nuca. Não fosse assim, não seriam seus servos.

Não, não são os tediosos sussurros de traição que retiram o Deus de seus profundos pensamentos. Ao levar à boca o copo com o líquido avermelhado que degusta, são os passos na sala ao lado que aguçam seus ouvidos.

A porta se abre e uma sombra cumprida surge seguida por uma figura usando um manto acinzentado. Pela abertura da vestimenta, no entanto, se vê que é uma mulher bela, jovem, com roupas de caçadora por baixo. Um arco está preso ao lado do corpo, cuidadosamente guardado. Ela adentra o escuro salão com passos vacilantes e joga-se de joelhos em frente a figura reptiliana.

Salve-o! - ainda que não fosse a postura, bastava o timbre da voz para perceber que se tratava de alguém passando por extremo sofrimento. Não era um pedido. Era uma súplica.

Sszzaas fitou durante alguns segundos Neruite, a mais nova Deusa do Panteão de Arton. Largou o copo no apoio da cadeira, e recostou-se confortavelmente.

Sua figura não está muito condizente com a Deusa dos sonhos. Muito menos da esperança.

Farei o que quiser. Meu poder, meu corpo, o que quiser é seu… serei sua serva.

O Deus da Traição molhou os lábios, apreciando os contornos da figura ajoelhada.

Tudo isto eu já tenho… ou posso ter, facilmente.

Neruite levantou o rosto pela primeira vez. Um rosto lavado de lágrimas.

Ele sofre. Ele sofre terrivelmente. Sofre tanto que nem sabe que sofre… isso, para ele, é pior que a morte… Ajude-me, Sszzaas…Eu farei qualquer coisa…

Nem minha inteligência privilegiada está imune a burrice do seu protegido, minha cara. De pouco adianta cercar as ovelhas quando estas insistem em cavar por debaixo dela e correr atrás da raposa. Lamento.

O silêncio cai na sala durante quase um minuto. Neruite limpa as lágrimas no manto e fica de pé. Seus olhos estão voltados para o homem serpente, mas parecem fitar muito além.

Não há outra escolha, então - disse a deusa da esperança sem qualquer esperança – Se ele não pode ser salvo, me entregarei a Tormenta e sofreremos juntos.

Ela se afasta com passos largos, decididos, muito diferentes dos que usou para entrar no aposento. Para próxima a porta, no entanto, quando escuta o arranhar do copo do Deus da Traição no apoio da cadeira.


Espere – diz ele em voz baixa – Tem algo que eu posso querer.




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