A armadura pesada rangia sob o peso do
guerreiro, a cada passo dado na tenda do General. Não, ele não era
novo como antes. Não, o mofo nas lonas do ambiente não eram do seu
agrado.
- Meu nome é Vidson Laued, de
Kanilar, Yuden. Terceiro General em comando da União Militar do
Leste e temente a Keen. Apresento-me para o serviço após o tempo de
exílio.
Ion Ruf, atrás da mesa repleta de
mapas, deu um pequeno sorriso para seus próprios oficiais superiores
que circundavam a mesa.
- Um lacaio de Arsenal, você quer
dizer. Vocês não morreram todos, quando o colosso caiu?
- Não, todos. Mestre Arsenal
preparou….
- Mestre? Seu “mestre” conseguiu
exterminar metade da população de Yuden e milhares de meu próprio
país e de Nalmack. Não chame de mestre quem tombou em combate e
depois envergonhou a si próprio aliando-se a seus inimigos para
somente ser derrotado novamente pelos demônios rubros, de quem é
prisioneiro.
Um dos oficiais, de bigodinho louro, o
observava do alto, sorridno, balançado a cabeça em concordância
com cada palavra dita pelo comandante. Apesar da revolução em seu
peito, a ética militar e a incerteza da situação deviam frear a
boca de Vidson. Mas ele já não era novo quanto antes, e o fogo em
suas entranhas era mais difícil de conter.
– Mestre Arsenal lutou com bravura
na batalha do Colosso e caiu junto aos seus inimigos, misturando seu
sangue com deles. Forneceu uma batalha que agradou a Keen. Após, se
uniu com as forças do reinado para derrotar um inimigo em comum. Não
há vergonha em sua derrota.
- Ele foi estúpido – vociferou o
comandante, batendo com o punho na mesa. - uma verdadeiro
estrategista teria esperado Lady Shivara atacar e ser destruída pela
tempestade, para então atacar, com o inimigo ocupado e dividido. E
não me fale em Keen, general do tolo Arsenal, porque bem sabe que
sou eu, agora, sou o sumosacerdote do Deus da guerra. Eu falo por ele
em Arton – Ian fez uma pequena pausa. - E foi por isso que veio até
aqui. Porque cansou de rastejar e procura dá sentido a sua vida
miserável, depois da covardia da fuga.
O Yudeano permaneceu calado.
- Veio buscando ser um oficial
superior. Homens para liderar em um muro de escudos. Uma morte
digna, talvez.
Nenhum som adveio do antigo general de
Arsenal. O sorriso de escárnio do oficial com bigodinho ao lado do
comandante começava a incomodar.
- Não, Vidson. Uma morte sem dúvida,
mas sem liderança. Estamos precisando…. - Ian olhou para o
oficial, que respondeu sem tirar os olhos divertidos da figura do
guerreiro que aguardava impassível – de um carrasco, comandante.
– Um carrasco! – anunciou Ian. -
Esse é o trabalho que temos para um dos aliados do covarde Arsenal.
– Eu aceito – falou o guerreiro,
sem hesitar. Não olhava para o comandante, mas para o oficial.
✠
O último esforço de guerra contra
tormenta encontrava-se acampado ao norte da floresta do Loma, em
Bielefield. Quarenta e cinco mil homens de várias nacionalidades
marchavam para Valkaria, para enfrentar o novo deus Ahradak, senhor
da tormenta. Há 15 dias Vidson acompanhava a tropa, observando que
os “homens” tinham espinhas demais e força de menos para segurar
o aço que pretendiam usar contra os demônios. Os verdadeiros
“homens” haviam morrido há mais de um ano, na batalha do reinado
e Arsenal contra a Tormenta. O sangue correu solto naquele dia, e a
perna de Vidson, gravemente ferida naquela batalha, ainda doía de
modo excruciante. “um ferimento feito pela tempestade rubra”,
atestou uma das muitas clérigas de Lena que ele procurou, “nunca
pode ser realmente curado”. Não, não podia.
- Diga ao comandante que estou indo –
falou Ian ao mensageiro, que o acordara naquela manhã com ordens do
novo sumosacerdote de Keen..
“Chegou a hora. Não deixemos o
maldito Zakaroviano” esperando.
Durante 15 dias não houve ordens do
comandante. Durante 15 dias eles apenas marcharam e treinaram. Mas
durante 15 dias tiveram também pesadelos com céus tomados de
vermelho e chuva de sangue. Tal tormento toda à noite não iria
passar sem consequências.
Em uma das clareiras do acampamento,
12 jovens estavam ajoelhados e amarrados. Tinham no corpo indícios
de que haviam sofrido naquela madrugada suplício ainda maior que os
pesadelos recorrentes.
- Pensei que a pena por deserção
fosse a morte - falou Vidson para Ian, que o aguardava junto com
outros oficiais - espancamento prévio não faz parte da punição.
– Não podemos nós dar o luxo de
perder soldados, carrasco. - o comandante então levantou a voz,
dirigindo-se à tropa que fora colocada em forma para assistir as
execuções. - Esses doze covardes tentaram sair do acampamento,
durante à noite, e merecem uma dura punição. Que todos saibam que
aquele que abandonar a tropa e suas obrigações será espancado e
executado. Sem exceção. Faça o seu trabalho, carrasco. E sem
presa.
Vidson observou quando um dos doze
torturados foi arrastado até uma pedra. Os soldados tiveram muito
trabalho para colocá-lo com a cabeça na pedra, o pescoço esticado,
pronto para o golpe fatal. Vidson percebeu que era um menino sem
pelos no rosto. Lutava, debatia-se, mas amarrado e contra quatro
homens mais velhos e mais fortes, nada podia fazer. O guerreiro de
Yuden retirou lentamente a espada da empunhadura e andou rapidamente,
decido a dar um golpe limpo.
- Eu exijo uma morte digna – gritou
o garoto. - quero morrer em combate, com uma espada na mão, como meu
pai e meu avó, pela glória de Keen.
Vidson parou, já com a espada em
cima do condenado.
- Ele tem razão – gritou para Ian.
- o código permite a condenação ou absolvição por combate para
quem o requer. Eu lutarei com ele.
- Não – o comandante foi a frente,
com o rosto vermelho. - Eu faço o código agora, e digo que quem
desertar vai morrer como um cão. Ele não terá uma morte digna
hoje, carrasco. E nem você.
Ian estava há 10 passos do antigo
general de Arsenal. Não havia obstáculos entre ele e a espada que
Vidson segurava, uma espada que poderia ser lançada sem
dificuldades, como ele já o fizera por diversas vezes. Vidson então
desceu a mão bem devagar pela empunhadura, até a lâmina.
O rapaz tentava não demonstrar medo,
olhando duro para a face do carrasco. Não podia esconder o tremor
das mãos, no entanto, nem controlar os esfincter. A urina desceu por
sua perna, até o solo. Ninguém riu.
Vidson, então, tirou seus olhos de
Ian e se voltou para o rapaz. Segurou a espada pela empunhadura e deu
um golpe seguro no pescoço do garoto, e viu sua cabeça rolar sem
dificuldade na terra agora manchada de sangue de Bielefied.
- O próximo - gritou.
✠
- tenho certeza do que eu digo –
falou o Callistiano, sentado com os três homens em volta da
fogueira. - meu primo Boren esteve na batalha de Trebuck. Eles soltam
raios pelo cu. E não só um, mas muitos.
Roben, um arqueiro Dehon, balançou
negativamente a cabeça.
- Que palhaçada, Zaur. Se eles
soltassem raios pelo cu, lutariam de costas e não teríamos sido
derrotados em Trebuck.
- Deixe de ser burro, Roben – Zaur
chupava o osso de um coelho que tinham achado perto do acampamento. -
a bunda dos demônios fica no peito!
- Se ela fica no peito – afirmou o
esquivo Joel, de PortsMouth, conhecido por roubar nas cartas – como
eles aguentam quanto cagam? Imagine o fedor!
- Aí você tem razão – concordou
Zaur, jogando a carne fora. - mas meu primo não é de mentir. Se ele
diz que soltavam raios pelo cú, é porque soltavam.
- O que acha, Carrasco? - indagou
Joel, para Vidison que sentava sozinho, alguns metros atrás da
fogueira. - Você viu um dos demônios na batalha?
Vidson mal escutou e não respondeu.
Suas mãos ainda estavam sujas de sangue do seu trabalho naquele dia
à tarde.
– Deixe ele quieto, Joel –
advertiu o Portsmouthiano. -, se quer manter sua cabeça nos
ombros...
- Não, o carrasco esteve lá, não
esteve, carrasco? - Zaur jogou um pedaço de pau em braça para perto
do Yudeano, para iluminá-lo – Esteve com Arsenal, quando este
lutou com as forças do reinado. Nosso comandante disse que foi um
ato de traição.
- Cale a boca, Callistiano – pediu o
arqueiro, olhando de esguelha para Vidson.
- Não acho que devo calar. Ele se
aliou aos seus inimigos. Callistia era contra Arsenal, que era um
bandido, claro, e para mim foi o fato dos aliados se juntarem a ele
que ocasionou a derrota.
- Foi uma decisão de Ace e set –
aduziu com ares de sabedoria Joel. - eles convenceram Shivara a
aceitar a aliança.
- O que demonstra como os herois são
burros. Deveriam ter matado arsenal na batalha dos colossos, e não
se aliar a ele – Zaur continuava a carga, acendendo um cigarro de
palha. - fizeram o favor de morrer e nos deixar na merda. E arsenal,
onde está? Pendurado como um bibelô na praça imperial de Valkaria,
para onde agora marchamos. E você, Yudeano, porquê não morreu ou
foi preso? Fugiu? Pensei que servos de keen não podiam fugir.
- Não o provoque, Callistiano –
Joel jogou mais madeira na fogueira, antes de continuar a falar. - a
tormenta, mesmo que não jogue raios pelo cú, é um inimigo à
altura. Não estive em Trebuck, mas sei que as forças do reinado
fizeram o que puderam, assim como ace, set e Arsenal. Aliás, tenho
muita admiração por Set. Estive na cidade que fundou, antes de
chegar aqui.
- Naquele buraco de portal? -
escarneou Zeon. - aquilo é igual uma ponte para mim. Não tem a
menor diferença.
- É uma cidade moderna, então você
não ia entender mesmo. Estava em Valkaria quando o imperador
anunciou a nova religião e que… vocês sabem quem seria nosso novo
Deus. Mal tive tempo de fugir para portal. - Joel se recostou em um
barranco. - está difícil a vida por lá, não pude me manter.
- Isso por que é um ladrão safado e
não tinha nada mais para roubar lá. - afirmou o arqueiro,
arrancando risos de Zaur e do próprio Joel. Somente Vidson não riu.
- Tá, isso também. Mas o engraçado
é que, bem, tentando ganhar algum dinheiro honesto escutei uma
conversa de Alassara, a regente da cidade. Ela estava recrutando
pessoas para irem ressuscitar Set e Ace.
- Isso é impossível – falou o
Arqueiro. - Todos sabem que os clérigos não tem mais esse poder.
- Eu sei. Mas foi isso que eu ouvi.
Havia um plano, que envolvia a Deusa… a deusa da noite, bendito
seja seu nome. Eles pareciam confiantes.
- Ah, com Set ou sem Aet, uma coisa eu
digo – o Callistiano levantou, e mostrou a própria bunda. - as
porras dos demônios da tormenta soltam raios pelo cú! Tomem
cuidado!
✠
Vidson deixou de ouvir a conversa,
perdido em seus próprios pensamentos. Após algum tempo, foi até
sua tenda e se preparou. Na madrugada alta, nocauteou um dos guardas
que vigiavam o estábulo e pegou um dos cavalos, um garanhão negro.
Foi necessário apenas nocautear mais dois soldados para sair do
acampamento e ganhar a noite. “Um
zakaroviano pode entender de armas, mas não entende nada de guerra”,
pensou o guerreiro
enquanto cavalgava para o oeste.
Próximo da saída utilizada por
Vidson para sair do acampamento, uma figura saiu das sombras e
caminhou satisfeito sob o luar, sem medo que qualquer um o visse.
Estava com a forma de um dos soldados, mas poderia tomar a forma de
um oficial com um bigodinho, um desertor executado ou mesmo um ladrão
de Postsmouth. Esse era um dos privilégios de ser um Deus.



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