domingo, 25 de dezembro de 2016

O Mensageiro dos Deuses

A armadura pesada rangia sob o peso do guerreiro, a cada passo dado na tenda do General. Não, ele não era novo como antes. Não, o mofo nas lonas do ambiente não eram do seu agrado.

- Meu nome é Vidson Laued, de Kanilar, Yuden. Terceiro General em comando da União Militar do Leste e temente a Keen. Apresento-me para o serviço após o tempo de exílio.

Ion Ruf, atrás da mesa repleta de mapas, deu um pequeno sorriso para seus próprios oficiais superiores que circundavam a mesa.

- Um lacaio de Arsenal, você quer dizer. Vocês não morreram todos, quando o colosso caiu?

- Não, todos. Mestre Arsenal preparou….

- Mestre? Seu “mestre” conseguiu exterminar metade da população de Yuden e milhares de meu próprio país e de Nalmack. Não chame de mestre quem tombou em combate e depois envergonhou a si próprio aliando-se a seus inimigos para somente ser derrotado novamente pelos demônios rubros, de quem é prisioneiro.

Um dos oficiais, de bigodinho louro, o observava do alto, sorridno, balançado a cabeça em concordância com cada palavra dita pelo comandante. Apesar da revolução em seu peito, a ética militar e a incerteza da situação deviam frear a boca de Vidson. Mas ele já não era novo quanto antes, e o fogo em suas entranhas era mais difícil de conter.

Mestre Arsenal lutou com bravura na batalha do Colosso e caiu junto aos seus inimigos, misturando seu sangue com deles. Forneceu uma batalha que agradou a Keen. Após, se uniu com as forças do reinado para derrotar um inimigo em comum. Não há vergonha em sua derrota.

- Ele foi estúpido – vociferou o comandante, batendo com o punho na mesa. - uma verdadeiro estrategista teria esperado Lady Shivara atacar e ser destruída pela tempestade, para então atacar, com o inimigo ocupado e dividido. E não me fale em Keen, general do tolo Arsenal, porque bem sabe que sou eu, agora, sou o sumosacerdote do Deus da guerra. Eu falo por ele em Arton – Ian fez uma pequena pausa. - E foi por isso que veio até aqui. Porque cansou de rastejar e procura dá sentido a sua vida miserável, depois da covardia da fuga.

O Yudeano permaneceu calado.

- Veio buscando ser um oficial superior. Homens para liderar em um muro de escudos. Uma morte digna, talvez.

Nenhum som adveio do antigo general de Arsenal. O sorriso de escárnio do oficial com bigodinho ao lado do comandante começava a incomodar.

- Não, Vidson. Uma morte sem dúvida, mas sem liderança. Estamos precisando…. - Ian olhou para o oficial, que respondeu sem tirar os olhos divertidos da figura do guerreiro que aguardava impassível – de um carrasco, comandante.

Um carrasco! – anunciou Ian. - Esse é o trabalho que temos para um dos aliados do covarde Arsenal.

Eu aceito – falou o guerreiro, sem hesitar. Não olhava para o comandante, mas para o oficial.

✠ 

O último esforço de guerra contra tormenta encontrava-se acampado ao norte da floresta do Loma, em Bielefield. Quarenta e cinco mil homens de várias nacionalidades marchavam para Valkaria, para enfrentar o novo deus Ahradak, senhor da tormenta. Há 15 dias Vidson acompanhava a tropa, observando que os “homens” tinham espinhas demais e força de menos para segurar o aço que pretendiam usar contra os demônios. Os verdadeiros “homens” haviam morrido há mais de um ano, na batalha do reinado e Arsenal contra a Tormenta. O sangue correu solto naquele dia, e a perna de Vidson, gravemente ferida naquela batalha, ainda doía de modo excruciante. “um ferimento feito pela tempestade rubra”, atestou uma das muitas clérigas de Lena que ele procurou, “nunca pode ser realmente curado”. Não, não podia.

- Diga ao comandante que estou indo – falou Ian ao mensageiro, que o acordara naquela manhã com ordens do novo sumosacerdote de Keen..

Chegou a hora. Não deixemos o maldito Zakaroviano” esperando.

Durante 15 dias não houve ordens do comandante. Durante 15 dias eles apenas marcharam e treinaram. Mas durante 15 dias tiveram também pesadelos com céus tomados de vermelho e chuva de sangue. Tal tormento toda à noite não iria passar sem consequências.

Em uma das clareiras do acampamento, 12 jovens estavam ajoelhados e amarrados. Tinham no corpo indícios de que haviam sofrido naquela madrugada suplício ainda maior que os pesadelos recorrentes.

- Pensei que a pena por deserção fosse a morte - falou Vidson para Ian, que o aguardava junto com outros oficiais - espancamento prévio não faz parte da punição.

Não podemos nós dar o luxo de perder soldados, carrasco. - o comandante então levantou a voz, dirigindo-se à tropa que fora colocada em forma para assistir as execuções. - Esses doze covardes tentaram sair do acampamento, durante à noite, e merecem uma dura punição. Que todos saibam que aquele que abandonar a tropa e suas obrigações será espancado e executado. Sem exceção. Faça o seu trabalho, carrasco. E sem presa.

Vidson observou quando um dos doze torturados foi arrastado até uma pedra. Os soldados tiveram muito trabalho para colocá-lo com a cabeça na pedra, o pescoço esticado, pronto para o golpe fatal. Vidson percebeu que era um menino sem pelos no rosto. Lutava, debatia-se, mas amarrado e contra quatro homens mais velhos e mais fortes, nada podia fazer. O guerreiro de Yuden retirou lentamente a espada da empunhadura e andou rapidamente, decido a dar um golpe limpo.

- Eu exijo uma morte digna – gritou o garoto. - quero morrer em combate, com uma espada na mão, como meu pai e meu avó, pela glória de Keen.

Vidson parou, já com a espada em cima do condenado.

- Ele tem razão – gritou para Ian. - o código permite a condenação ou absolvição por combate para quem o requer. Eu lutarei com ele.

- Não – o comandante foi a frente, com o rosto vermelho. - Eu faço o código agora, e digo que quem desertar vai morrer como um cão. Ele não terá uma morte digna hoje, carrasco. E nem você.

Ian estava há 10 passos do antigo general de Arsenal. Não havia obstáculos entre ele e a espada que Vidson segurava, uma espada que poderia ser lançada sem dificuldades, como ele já o fizera por diversas vezes. Vidson então desceu a mão bem devagar pela empunhadura, até a lâmina.

O rapaz tentava não demonstrar medo, olhando duro para a face do carrasco. Não podia esconder o tremor das mãos, no entanto, nem controlar os esfincter. A urina desceu por sua perna, até o solo. Ninguém riu.

Vidson, então, tirou seus olhos de Ian e se voltou para o rapaz. Segurou a espada pela empunhadura e deu um golpe seguro no pescoço do garoto, e viu sua cabeça rolar sem dificuldade na terra agora manchada de sangue de Bielefied.

- O próximo - gritou.

                                                                 ✠

- tenho certeza do que eu digo – falou o Callistiano, sentado com os três homens em volta da fogueira. - meu primo Boren esteve na batalha de Trebuck. Eles soltam raios pelo cu. E não só um, mas muitos.

Roben, um arqueiro Dehon, balançou negativamente a cabeça.

- Que palhaçada, Zaur. Se eles soltassem raios pelo cu, lutariam de costas e não teríamos sido derrotados em Trebuck.

- Deixe de ser burro, Roben – Zaur chupava o osso de um coelho que tinham achado perto do acampamento. - a bunda dos demônios fica no peito!

- Se ela fica no peito – afirmou o esquivo Joel, de PortsMouth, conhecido por roubar nas cartas – como eles aguentam quanto cagam? Imagine o fedor!

- Aí você tem razão – concordou Zaur, jogando a carne fora. - mas meu primo não é de mentir. Se ele diz que soltavam raios pelo cú, é porque soltavam.

- O que acha, Carrasco? - indagou Joel, para Vidison que sentava sozinho, alguns metros atrás da fogueira. - Você viu um dos demônios na batalha?

Vidson mal escutou e não respondeu. Suas mãos ainda estavam sujas de sangue do seu trabalho naquele dia à tarde.

Deixe ele quieto, Joel – advertiu o Portsmouthiano. -, se quer manter sua cabeça nos ombros...

- Não, o carrasco esteve lá, não esteve, carrasco? - Zaur jogou um pedaço de pau em braça para perto do Yudeano, para iluminá-lo – Esteve com Arsenal, quando este lutou com as forças do reinado. Nosso comandante disse que foi um ato de traição.

- Cale a boca, Callistiano – pediu o arqueiro, olhando de esguelha para Vidson.

- Não acho que devo calar. Ele se aliou aos seus inimigos. Callistia era contra Arsenal, que era um bandido, claro, e para mim foi o fato dos aliados se juntarem a ele que ocasionou a derrota.

- Foi uma decisão de Ace e set – aduziu com ares de sabedoria Joel. - eles convenceram Shivara a aceitar a aliança.
- O que demonstra como os herois são burros. Deveriam ter matado arsenal na batalha dos colossos, e não se aliar a ele – Zaur continuava a carga, acendendo um cigarro de palha. - fizeram o favor de morrer e nos deixar na merda. E arsenal, onde está? Pendurado como um bibelô na praça imperial de Valkaria, para onde agora marchamos. E você, Yudeano, porquê não morreu ou foi preso? Fugiu? Pensei que servos de keen não podiam fugir.

- Não o provoque, Callistiano – Joel jogou mais madeira na fogueira, antes de continuar a falar. - a tormenta, mesmo que não jogue raios pelo cú, é um inimigo à altura. Não estive em Trebuck, mas sei que as forças do reinado fizeram o que puderam, assim como ace, set e Arsenal. Aliás, tenho muita admiração por Set. Estive na cidade que fundou, antes de chegar aqui.

- Naquele buraco de portal? - escarneou Zeon. - aquilo é igual uma ponte para mim. Não tem a menor diferença.

- É uma cidade moderna, então você não ia entender mesmo. Estava em Valkaria quando o imperador anunciou a nova religião e que… vocês sabem quem seria nosso novo Deus. Mal tive tempo de fugir para portal. - Joel se recostou em um barranco. - está difícil a vida por lá, não pude me manter.

- Isso por que é um ladrão safado e não tinha nada mais para roubar lá. - afirmou o arqueiro, arrancando risos de Zaur e do próprio Joel. Somente Vidson não riu.

- Tá, isso também. Mas o engraçado é que, bem, tentando ganhar algum dinheiro honesto escutei uma conversa de Alassara, a regente da cidade. Ela estava recrutando pessoas para irem ressuscitar Set e Ace.

- Isso é impossível – falou o Arqueiro. - Todos sabem que os clérigos não tem mais esse poder.

- Eu sei. Mas foi isso que eu ouvi. Havia um plano, que envolvia a Deusa… a deusa da noite, bendito seja seu nome. Eles pareciam confiantes.

- Ah, com Set ou sem Aet, uma coisa eu digo – o Callistiano levantou, e mostrou a própria bunda. - as porras dos demônios da tormenta soltam raios pelo cú! Tomem cuidado!


Vidson deixou de ouvir a conversa, perdido em seus próprios pensamentos. Após algum tempo, foi até sua tenda e se preparou. Na madrugada alta, nocauteou um dos guardas que vigiavam o estábulo e pegou um dos cavalos, um garanhão negro. Foi necessário apenas nocautear mais dois soldados para sair do acampamento e ganhar a noite. “Um zakaroviano pode entender de armas, mas não entende nada de guerra”, pensou o guerreiro enquanto cavalgava para o oeste.


Próximo da saída utilizada por Vidson para sair do acampamento, uma figura saiu das sombras e caminhou satisfeito sob o luar, sem medo que qualquer um o visse. Estava com a forma de um dos soldados, mas poderia tomar a forma de um oficial com um bigodinho, um desertor executado ou mesmo um ladrão de Postsmouth. Esse era um dos privilégios de ser um Deus.


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